A experiência virtual marcou o 7º Festival Juruena Vivo que, por conta da pandemia, aconteceu de forma online pela primeira vez. A mudança, embora tenha trazido muitos desafios para a organização e para as comunidades do Juruena, que enfrentam ainda problemas com a qualidade da conexão, ampliou a possibilidade de comunicação das vozes da sub-bacia do Juruena. “As versões anteriores do festival nos levaram a muitos lugares do noroeste de Mato Grosso. Desta vez, a versão online nos leva para todas as partes do estado e para o mundo via internet”, saudou Elani Lobato, da secretaria executiva da Rede Juruena Vivo.
O evento, que aconteceu entre os dias 23 e 25 de outubro, contou com duas lives, a primeira, sobre a relação de cuidado e conexão entre corpo e território e a segunda sobre os impactos da pandemia nas cadeias da sociobiodiversidade.
A noite de sábado foi marcada pelo clima festivo, que acompanha todas as edições do evento. No Cine Juruena, houve a transmissão de quatro curtas. “Tecendo nossos caminhos” e “Os espíritos só entendem nosso idioma” são produções autorais do coletivo de cinema dos jovens Manoki e Myky. Já “Hidrelétrica de Castanheira ameaça patrimônio material e imaterial dos Rikbaktsa” é uma produção da Opan em parceria com o povo Rikbaktsa e fala sobre as ameaças ao tutãra, um caramujo utilizado para fazer o colar de casamento desta etnia. Por fim, “Energia para quem? Teles Pires, o rio mais impactado da Amazônia” é uma produção do Movimento dos Atingidos por Barragens/MT e do Coletivo Proteja Amazônia.
No mesmo dia, dois shows brindaram as comunidades do Juruena. Victor Batista, frequentador assíduo do Festival, e seus convidados abriram a noite e Cristopher Chaves e Banda Maria Izabel fizeram uma versão do “Show 20 versões” especialmente para o Juruena.
Terra meu corpo: experiências de conexão e cuidado
A primeira live do festival foi extremamente potente, com a participação de quatro mulheres que costuraram diferentes temas, perspectivas e análises sobre a atual conjuntura.
Célia Xacriabá, integrante da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), falou sobre a conexão entre corpo-território para os povos indígenas e apontou que a humanidade precisa resgatar essa relação perdida. “Quando arrancam os territórios de nós não é somente uma morte individual, é uma morte coletiva, estão arrancando nossa morada coletiva e nossa morada interior”, afirmou.
Como saída para a atual crise financeira, política e sanitária, ela apontou como perspectiva o respeito ao tempo da natureza: “muito mais o que pensar uma corrida contra o tempo, precisamos de uma corrida pela retomada do nosso tempo que está sendo sequestrado, o tempo da terra é diferente, o tempo do alimento e do útero são de outra temporalidade”.
Helena Moreira, do Sindicato de Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais (STTR) de Cotriguaçu encantou a todos com sua simplicidade e pelas dificuldades técnicas que enfrentou para estar presente. Já de início, explicou que essa era uma oportunidade única de fala para uma agricultora: “para a gente é um orgulho participar deste evento, porque é uma oportunidade de a gente falar o que sente, o que vive. Quem está na cidade e não sabe a realidade do campo”.
Helena compartilhou a experiência do projeto de recuperação de nascentes urbanas em seu município e denunciou o sofrimento da natureza pelas ações humanas e uso dos agrotóxicos.
Tipuici Manoki, professora e comunicadora indígena do Mídia Índia e da Rede Juruena Vivo, tocou em outro ponto importante: a retirada de direitos dos povos indígenas durante a pandemia, quando estes tiveram que se recolher em suas aldeias. Em plena pandemia, “a Funai dá a normativa 09 e logo em seguida o estado de Mato Grosso cria a PLC 1720 e vem liberando para a boiada para passar nos territórios indígenas e um dos territórios afetados foi o Manoki”, denunciou ao referir-se ao projeto de lei que flexibiliza o processo de licença ambiental no estado e foi aprovado às pressas e sem discussão com a população afetada.
A mesa foi mediada por Márcia Maciel, que trouxe outro fato da conjuntura totalmente relacionado à conexão corpo-território: a discussão em torno do Marco Temporal, que quer limitar o direito à terra dos povos indígenas a sua presença nos territórios antes de 1988. A derrubada do “marco temporal não é uma luta só dos indígenas, é de todos”, concluiu.
Melissa Vieira, comunicadora da Rede Juruena Vivo e que teve problemas com sua internet para assistir o festival online, devido as fortes chuvas em Juína, ficou emocionada com as falas destas mulheres. “Eu achei sensacional, vi várias pessoas que participaram de outras edições do festival interagindo nos comentários”, relatou animada.
Impactos da pandemia nas cadeias da sociobiodiversidade
Outro debate importante do evento foi sobre os impactos da pandemia nas cadeias da sociobiodiversidade. No Juruena, existem povos indígenas e agricultores que vivem da coleta da castanha-do-Brasil, açaí, pequi, dentre outros. Para além de serem alimentos importantes na alimentação, eles são alternativas de renda, mas com a pandemia foram fortemente impactados.
“Pela primeira vez, tivemos que parar a fábrica da Cooperativa dos Agricultores do Vale do Amanhecer (Coopavam) por falta de mercado”, contou Paulo Nunes, da Associação de Desenvolvimento Rural de Juruena (Adejur), que junto com outros representantes de organizações e associações que atuam na mediação destas cadeias produtivas, participou da segunda live.
Os desafios foram vários. Gustavo Silveira, integrante da Operação Amazônia Nativa (OPAN), apoia indígenas que fazem o manejo do pirarucu no estado do Amazonas. Para ele, o principal desafio foi sair da atuação no território à princípio e estruturar as normas de segurança para evitar que o manejo não acontecesse este ano. “Entendendo que durante a pandemia a pesca é fundamental, tanto para a sobrevivência, como por ser alternativa de renda. E como vários produtos da sociobiodiversidade, as cadeias são sazonais, não daria para esperar passar a pandemia”, ponderou.
Já Emerson de Oliveira, da organização Pacto das Águas e Marcelo Munduruku, do Instituto Munduruku, destacaram a dificuldade das pequenas organizações de coletores se manterem legais e com a contabilidade em dia sem poderem acessar as cidades.
Enquanto o Pacto das Águas buscou apoiar as associações que estavam acessando o Programa de Aquisição de Alimentos para que não perdessem este mercado, os membros do Instituto Munduruku tiveram que se arriscar para que a coleta do açaí e da castanha não parasse. “Para sair da terra indígenas, todas as pessoas tiveram que fazer sete dias de isolamento e fazer testes rápidos antes de ter contato com a comunidade”, contou Marcelo.
Fundamental neste período foi o apoio das organizações que mediaram o contato entre as comunidades e os grupos de trabalho que buscavam rapidamente dar uma resposta à crise que se abriu com a Covid-19. Em contextos como o Amazonas, mas também certas regiões de Mato Grosso, onde as comunidades têm dificuldade para fazer contato por internet, esta ponte foi fundamental, destacaram os participantes da live.
O desafio foi grande, mas abriram-se novas parcerias e começou-se a pensar em novos mercados. Paulo conta que a Coopavam conseguiu abertura internacional para a castanha de vários coletores. “A gente acredita que se não fosse pelo impacto da pandemia não haveria um esforço para buscar este mercado e se preparar para fazer a exportação. E quem está lá no mercado internacional não olharia para uma organização tão pequena como a Coopavam”, relatou animado.
No mesmo sentido, Benedita, integrante do Instituto Centro de Vida e mediadora da mesa, destacou que a criatividade foi importante neste momento: “é sair desta zona de conforto e dizer ‘e agora?’. Uma das coisas importantes é começar a trabalhar neste mundo virtual e ver que a gente também pode comercializar por aqui”.
O evento contou ainda com reuniões internas de organização da Rede Juruena Vivo.