Para não deixar a histórica vila de Fontanillas sucumbir debaixo d’água, professora fala sobre a magia do Juruena e sua importância para a região.
Foto: Andreia Fanzeres/OPAN
Distrito de Fontanillas, Juína-MT – Ela é daquelas professoras com quem dá gosto de conversar. Português preciso, corretíssimo, lição para quem escuta. Soteropolitana – o sotaque não deixa esconder – viveu em Dourados (MS), mas foi através de um concurso público que a levou às margens do rio Juruena, para a vila que nos anos 70 foi o primeiro porto para colonização do noroeste de Mato Grosso: Fontanillas. Sua missão sempre foi a escola, a quem dedica os 21 anos de trajetória naquele distante pedaço de chão. O engajamento com o ensino fez de Elani dos Anjos Lobato um expoente entre os 183 habitantes de Fontanillas, por isso logo sua determinação foi sendo também importante para tocar os trabalhos da associação de moradores, que enfrenta hoje o desafio de lutar para que tanta história e tanta natureza não sejam afogadas pelo lago de uma hidrelétrica.
“Se for para o bem do Juruena, eu vou”, disse Elani quando durante o II Festival Juruena Vivo, realizado em Juína em outubro de 2015, ela foi convidada a retornar pelos 60 quilômetros que separam a cidade de seu mais antigo distrito – 40 dos quais em estrada de terra – para a realização desta entrevista. Ao longo do caminho, a paisagem desoladora de pastos degradados a fazia relembrar o quão diferente era a região quando por lá aportou. “Naquela época era só mato. A gente tinha dificuldade para passar, tinha que ter machado porque as árvores chegavam a fechar a estrada. É uma tristeza ver essa destruição”, lamenta.
A estrada, que estava cascalhada e em excelente estado de conservação, não condiz com as condições enfrentadas pelos moradores ao longo do ano. “A prefeitura arrumou a estrada por causa do festival de pesca, que aconteceu em setembro”, diz Elani. Esta é a única época do ano em que Fontanillas volta a ver um número equivalente àquilo que havia na época de sua fundação, quando chegaram a viver cerca de cinco mil pessoas ali. “Era barraca em todos os quintais, lixo espalhado pela comunidade, e depois todo mundo vai embora”, conta a professora.
O distrito, que homenageia o então governador de Mato Grosso, José Manoel Fontanillas Fragelli (1971-1975), tem como sua principal atividade o turismo, mesmo carecendo de estrutura. Os remansos e rebojos cristalinos formados pelo rio Juruena fizeram de Fontanillas um balneário bastante procurado nos finais de semana por famílias das cidades do noroeste do estado. E perigoso também. Este é um trecho em que o Juruena se afunila. O rio corre depressa entre Fontanillas, na sua margem esquerda, e a Terra Indígena Erikpatsa, no lado direito. A velocidade é tanta que, por causa dos redemoinhos formados pelas pedras no fundo, atravessá-lo pode ser um desafio mortal. O movimento daquelas águas é hipnotizante. “O Juruena é mágico porque ele faz com que a gente se sinta vivo aqui. Temos essa relação mística, com deus, com a natureza, com o nosso par, com quem está perto. Ele faz essa ligação maravilhosa entre a gente daqui de Fontanillas com o chão do outro lado da aldeia. Ele diz que nós somos irmãos, parceiros de um mesmo lugar, uma mesma vida”, reflete Elani.
Fontanillas debaixo d’água
O dinamismo das águas do Juruena nesse trecho atraiu a atenção do governo, mas não para aprimorar o turismo, a pesca, a agricultura familiar ou outras atividades que fortalecessem o desenvolvimento econômico e social de Fontanillas. Ao contrário disso, a ideia é deixa-la debaixo d’água. De acordo com os estudos de inventário hidrelétrico da bacia do Juruena aprovados pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) em 2011, justamente na altura do distrito de Fontanillas está prevista a instalação da usina hidrelétrica JRN 577, com potência de 225 MW e 563 quilômetros quadrados de reservatório. De todas as usinas previstas para a bacia do Juruena, esta é a única que, para existir nessas condições, precisará afogar por inteiro uma área urbana.
Segundo a Avaliação Ambiental Integrada da bacia do rio Juruena, realizada pela CNEC Engenharia S.A. e contratada pela Empresa de Pesquisa Energética (EPE), “O maior impacto no que concerne à população diretamente afetada, sem dúvida, ocorrerá em Fontanillas, onde a inundação do sítio atualmente ocupado pela formação do reservatório alterará não somente as condições físicas da localidade e dos pontos de pesca utilizados, como possivelmente as relações de produção e relações de vizinhança da população, uma vez que o novo local de reassentamento da localidade, pode levar à indução de um rearranjo nas formas vigentes de organização da sociedade”, afirma um trecho do documento.
Ele relata, também, que devido à baixa densidade populacional de Fontanillas, o impacto social não deverá ser expressivo. Esse é mesmo um fator de fragilidade que a Associação de Moradores de Fontanillas quer enfrentar. “Se formos embora daqui, fica mais fácil perdermos o nosso Juruena, perdermos essa luta”, diz Elani. “Não há políticas públicas que incentivem a permanência da população neste lugar. Os moradores, chacareiros e sitiantes foram vendendo suas propriedades para os grandes fazendeiros do entorno. Até a pesca vem decrescendo”, diz. O posto de saúde da vila fechou, obrigando os moradores ao penoso trajeto até Juína, sendo que também não há linha regular de ônibus. Restou a escola – construção erguida totalmente em mogno em 1976, porto seguro de Elani e literalmente o ponto de resistência de quem vive em Fontanillas. “Estamos lutando para que a nossa escola permaneça aberta. Recebemos crianças da alfabetização ao ensino médio, inclusive crianças do povo Rikbaktsa que vêm estudar aqui”, afirma a professora.
Enquanto os moradores de Fontanillas investem suas vidas no fortalecimento da vila, os projetos que querem vê-la sucumbir correm paralela e silenciosamente. “Desde 2008, quando pela primeira vez nós soubemos das usinas hidrelétricas no Juruena, nunca fomos chamados para nenhuma discussão. Nem aparecemos nos mapas. Nada nos foi perguntado. Nos sentimos formigas, invisíveis. Foram os Rikbaktsa que falaram conosco”, relata Elani, que enxerga vida longa à vila que a acolheu. “A gente acredita que é capaz de manter o Juruena vivo e a partir dele gerar renda com o ecoturismo. As pessoas precisam aproveitar as belezas naturais que podemos oferecer. Isso aqui é qualidade de vida. Isso não é olhar futurista. A gente não quer que o Juruena melhore porque ele já é bom. Queremos que ele permaneça deste jeito”, conclui.
Saiba mais:
Rede Juruena Vivo – site2024.redejuruenavivo.org.br
Email: redejuruenavivo@gmail.com
Mapa com inventários hidrelétricos na bacia do Juruena (clique aqui)
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Andreia Fanzeres – andreia@amazonianativa.org.br Telefone: 65 3322 2980 e 65 84765620 Site: www.amazonianativa.org.br