Em celebração ao Dia Mundial das Águas, movimentos socioambientais da Amazônia realizam o seminário “Correnteza: O Fluxo de Lutas nas Águas Amazônicas”.

Pôr do sol no Rio Tapajós. Foto: Paula Farias.

Na semana em que ocorre a Conferência da ONU sobre as Águas, entre os dias 22 e 24 de março, na cidade de Nova York, nos Estados Unidos, movimentos socioambientais se juntaram com o objetivo de debater sobre a crise global e ações para alcançar os objetivos e metas mundiais relacionadas às águas e para refletir sobre a resistência para a proteção e defesa dos Rios da Amazônia.

Entendendo que o uso da água deve se tornar uma agenda estratégica e fundamental para a defesa da vida e das populações da Amazônia, o seminário “Correnteza: O fluxo de lutas nas águas amazônicas”, foi construído e idealizado por um conjunto de organizações e movimentos sociais. O encontro virtual aconteceu no último sábado, dia 18 de março, às 09h30 (horário de Brasília) e reuniu representantes da Rede Juruena Vivo, do Movimento Tapajós Vivo, da Organização Mandí, do Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira, da International River e do Movimento Xingu Vivo Para Sempre, que lutam na defesa e proteção dos rios da Amazônia nos estados do Pará, Mato Grosso e Rondônia.

O primeiro bloco, mediado por Waleska Queiroz, da Rede Jandiras, iniciou com uma rodada de apresentações de cada organização e movimento convidado, levando ao conhecimento do público as vivências e relações com água em seus territórios e como vêm se movendo para desenvolver ações que sejam efetivas, além da conscientização sobre a importância da proteção dos rios na Amazônia.

Lígia da Paz, representante da organização Mandí, de Belém do Pará, iniciou o seminário com a temática “Rios Urbanos e Saneamento Básico em uma Metrópole na Amazônia”. Em sua fala, citando Micaela Valentim, fundadora da Organização Mandí, apresentou uma reflexão sobre a pressão que os rios urbanos sofrem em seus cursos naturais: “Os rios são águas que carregam identidades, vivências e, para muitos povos, são sagrados. Os rios urbanos são os que passam por processos de modificações urbanas, com a retificação de seus cursos e a impermeabilização de suas margens”, disse ela, destacando que essa modificação é o que  muitas vezes os tornam invisíveis ao olhar mais cuidadoso da legislação ambiental e do poder público das cidades.

Em seguida, Lígia fez um recorte sobre o Rio Tucunduba, que deságua no Rio Guamá,  um rio que passa por Belém, onde a população tem seus modos de vida ligados diretamente a essas águas, como a cultura, a alimentação, o lazer e o transporte, além das histórias e lendas e que, por por falta de saneamento básico, acabam virando esgoto e depósito de lixo, problemas que acontecem nos processos de urbanização de muitas cidades amazônicas, muitas vezes tornando o acesso ao abastecimento de água escasso e atingindo boa parte da população. ”Entre os 100 municípios mais populosos do país, Belém e Ananindeua se destacam com os 4º e 5º piores indicadores de saneamento básico”, destacou.  De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIs), 35,4% da população da região não tem acesso à água potável e 81,2% estão sem coleta de esgoto. Entre a população que mais sofre esses problemas, Lígia observou também que há um recorte de gênero, classe e raça, ou seja, são as mulheres, pessoas de baixa renda, populações tradicionais e pessoas negras as mais prejudicadas. Também é esse público o mais  vulnerável às questões climáticas, pois geralmente vivem às margens destes rios e que também não têm amparo dos poderes públicos responsáveis.

Com o tema “Territórios ameaçados: mineração e hidrelétricas na sub-bacia do Juruena e o trabalho em rede como estratégia de luta e re-existência”, Michel de Andrade, da Rede Juruena Vivo, estado de Mato Grosso, trouxe o relato de luta e re-existência dessas águas, que iniciou antes mesmo de 2014, ano que a Rede Juruena Vivo nasceu para somar forças na luta em defesa dos direitos dos povos e comunidades rurais e ribeirinhas e pela integridade da bacia do Juruena. Michel traz um panorama geral dos principais problemas que vêm preocupando a população da bacia, que são a mineração, garimpos e hidrelétricas, apresentando dados importantes sobre a quantidade de requerimentos de lavra garimpeira e a quantidade de empreendimentos hidrelétricos que vem aumentando a cada ano. Michel de Andrade destacou o caso da Usina Hidrelétrica (UHE) Castanheira, que está prevista para ser construída no Rio Arinos, um dos principais afluentes do Rio Juruena, na cidade de Juara em Mato Grosso, que é a porta de entrada para os demais projetos de hidrelétricas na região da Amazônia. Em seu Estudos de Componente Indígena (ECI), a UHE desconsidera um dos povos originários desse território, o Povo Kajkwakhrattxi/Tapayuna, que foram retirados de seu território ancestral e levados para o Xingu em Mato Grosso.

Norah Costa, da Escola de Militância Socioambiental Amazônida e Movimento Tapajós Vivo, Pará, falou sobre o tema “Educação Popular e Ambiental na Bacia do Rio Tapajós”, trazendo a trajetória do Movimento Tapajós Vivo, que tem se engajado na luta pela garantia dos direitos dos povos indígenas, ribeirinhos e das populações urbanas através da mobilização e educação popular. Uma forma de reafirmar a presença e a luta no território, trazendo a educação popular e socioambiental como base para informar as populações, conhecer suas demandas e pensar ações de enfrentamento e para o fortalecimento da luta. Como exemplo, Norah citou a Escola de Militância Socioambiental Amazônida – EMSA, que nasceu da junção de atores dos rios Juruena, Teles Pires e Tapajós no ano de 2019, tendo seu primeiro ciclo de formações iniciado em 2022, durante a pandemia da COVID 19.

A EMSA tem como objetivo principal a formação de militância socioambiental e política com diferentes atores sociais, conhecer o território desde o período da colonização para entender o contexto amazônico, trazendo também temáticas relacionadas ao agronegócio, mineração, hidrelétricas entre outros, compartilhando conhecimentos científicos e populares para a formação de pensamentos críticos a respeito dos impactos que esses grandes projetos trazem para os territórios e a pensar no desenvolvimento sustentável. O ciclo de formação dessa escola continua em 2023, e espera-se que nos próximos anos ela continue acontecendo e trazendo essa colaboração tão importante para outros territórios da bacia do Tapajós.

 

Iremar Ferreira do Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira – COMVIDA, do estado de Rondônia, trouxe sua contribuição para o seminário com o tema “Direitos da Natureza e dos Rios”, inicialmente cantando uma música de composição própria que diz:

Balsa no Rio Juruena – MT. Foto: Paula Farias.

“Deixem meu rio viver,
Deixem meu rio passar
Deixem-no viver sem barramento
Que vêm para a vida apagar
Deixe meu rio correr livre sem nada a barrar
(Refrão) Rios Vivos é vida livre
Rios livres é vida viva…”

A partir do canto, deu seguimento relembrando onde nasceu a correnteza que proporcionou o encontro de diferentes lugares, mas com pautas interligadas entre si, da aliança entre os rios. Foi quando essas alianças iniciaram seu percurso na luta em defesa dos rios e seguiram se fortalecendo em encontros estaduais, se juntando a outras alianças da Pan Amazônia e consolidando a Aliança Defensores e Defensoras de Los Rios de America Latina, trazendo a temática dos direitos dos rios para espaços importantes de discussão como o Fórum das Mudanças Climáticas e Justiça e Socioambiental, onde começou a articulação pelos direitos da natureza no Brasil. Ele explica que no Brasil já existe, em Guajará-Mirim, o primeiro projeto na Amazônia brasileira de Rio Portador de Direito do Rio Lage, acatado por cinco vereadores, o suficiente para admitir uma alteração na lei orgânica do município incluindo os direitos da natureza.

Em sua fala, celebra: “esse fluxo de nossas lutas em defesa das águas e em defesa dos rios, já estão apresentando os frutos dessa caminhada. Os desafios têm sido muitos, as ameaças, as violações de direitos” e traz a memória da relação dos povos originários com as águas “Para o Povo Oro Wari, o céu são as águas. Não é este este céu católico, são as águas. As águas são os canais assim como para o Povo Mura, assim como com certeza é para os parentes da bacia do Juruena, do Teles Pires, do Xingu, do Tapajós. As águas são os caminhos ancestrais, os caminhos dos espíritos.”

A mediadora Waleska Queiroz, da Rede Jandiras, comentou  sobre  a composição do nosso corpo e a importância de compartilhar as histórias de luta nessa: “Nós somos setenta por cento água, então o que a gente pauta não é só uma luta, é a nossa vivência, é o nosso pertencimento ao nosso território e isso é muito importante de ser despertado”. Ela finalizou complementando: “A luta de cada um aqui se conecta. A gente está em território diferente, mas a gente fala a partir de uma perspectiva local e de uma identidade local e fala também sobre desafios que a gente enfrenta nesse dia a dia, mas o que nos fortalece é justamente saber que a gente não está sozinho e que a gente tem esse desejo, essa vontade de conseguir transformar, transformar o nosso território, de sermos realmente esses protetores.”

Luiz Cláudio Brito, do Movimento Xingu Vivo Para Sempre – PA, abordou o tema “Desenvolvimento, Água e Movimentos Sociais na Volta Grande do Xingu”, com elementos importantes que complementam as falas anteriores relacionadas à mineração e hidrelétricas, que é o fato dos interesses minerários energéticos estarem intimamente associados. Na sequência, apontou a grandeza dos impactos sociais e ambientais deixados pela Usina Belo Monte, que recentemente completou 10 anos de destruição, pois sua instalação afetou permanentemente uma área de 100 quilômetros, impedindo a piracema no Rio Xingu. A formação do reservatório de Belo Monte causou o desaparecimento de um número de espécies de peixes e a redução da quantidade de outros, causando uma perda de diversidade de espécies e abaixo do lago com a redução do nível de água afetando todo um ecossistema e também os próprios moradores daquela região.

Belo Monte foi uma abertura para um projeto de mineração na Volta Grande do Xingu, que tem o objetivo de retirar cerca de trinta toneladas de ouro e outros minerais associados em um período de dez anos, utilizando de uma das tecnologias mais nocivas e degradantes, com a formação da barragem de rejeitos que chega a ser maior que as que causaram os crimes de Mariana e Brumadinho, em Minas Gerais.  É a partir desse histórico de violações de direitos humanos e não humanos que as populações de agricultores, ribeirinhos, indígenas e mulheres começam a se organizar para defender a vida dos seus e de seus corpos-territórios para que se pense num projeto de futuro que garanta os direitos e a vida desses territórios. Foi durante o período mais duro do enfrentamento da hidrelétrica de Belo Monte que nasceu o Movimento Xingu Vivo Para Sempre. Ao finalizar, Luiz lembrou a fala sobre os direitos da natureza, complementando: “É importante como o Iremar citou defender o rio como um sujeito de direitos também, mas é importante lembrar que há outros sujeitos de direitos que são os não humanos, né? Desde a capivara, a onça, porque é o território deles também e não têm pra onde ir. O território que está lá é o território do macaco, do tatu, da capivara, da onça, do tambaqui e de diversos tipos de peixes. Então esse território é múltiplo e diverso é o que a gente precisa defender.”

Flávio Montiel do International Rivers, apresentou o Projeto de Lei de Proteção dos Rios, que está em construção e diálogo direto com os movimentos sociais e entidades da sociedade civil e que visa a criação de modelos de proteção permanente de rios, além de propor a criação de um sistema nacional de proteção de rios onde passam a serem adotados maiores critérios e limites para a exploração, com penalidades para aqueles que degradam e agridem os rios. “Nós estamos falando de rios e de água. Nós não vemos apenas como recurso, a água é um ser vivo. A água é um ente da natureza e ela tem a sua própria dinâmica e presta serviços ecossistêmicos, ela não pode ser vista apenas como um recurso a ser utilizado, a ser explorado, mas a ser conservado e a ser protegido…”

O segundo bloco do encontro foi aberto para falas dos participantes e para perguntas direcionadas aos convidados e finalizou com a apresentação cultural do Povo Tapayuna, relembrando sua história de luta pelo território tradicional, emocionando os presentes.

O seminário “Correnteza: O fluxo de lutas nas águas amazônicas” foi organizado em colaboração entre o Movimento Tapajós Vivo, Movimento Xingu Vivo Para Sempre, Rede Juruena Vivo, Comitê de Defesa da Vida Amazônica na Bacia do Rio Madeira e a Organização Mandí.

 

Por Paula Farias

 

Rede Juruena Vivo Somos uma rede composta por indígenas, agricultores familiares, pesquisadores, entidades da sociedade civil, movimentos sociais urbanos e rurais, entre outros que atuam na bacia do rio Juruena (MT).