Mais de 170 pessoas, entre representantes de povos indígenas do Mato Grosso e do Pará, de agricultores familiares, de organizações não-governamentais (ONGs) e do Ministério Público Estadual (MPE), além de acadêmicos e simpatizantes da defesa dos direitos de populações vulneráveis a empreendimentos hidrelétricos, se reuniram em Juara, Mato Grosso, na terceira edição do Festival Juruena Vivo, realizado do dia 27 a 30 de outubro. Um dos principais resultados do encontro foi a redação de um manifesto da bacia do Tapajós, que exige das Secretarias Estaduais de Meio Ambiente (Sema) e da Agência Nacional de Águas (ANA) a implantação do Comitê de Bacia Hidrográfica dos rios Juruena/Teles Pires/Tapajós de maneira integrada, incluindo a população atingida.
Hoje a pressão sobre os rios dessa região é grande. Só na região da Bacia do Juruena, em Mato Grosso, estão previstos 114 empreendimentos hidrelétricos (entre Pequenas Centrais Hidrelétricas – PCHs e Usinas – UHEs), que afetarão 10 povos indígenas. Na Bacia do Teles Pires, estão em funcionamento quatro usinas no próprio rio, além de uma no rio Apiacás, e outras ainda em fase de planejamento. “A partir das experiências vividas no Teles Pires, a população da região da Bacia do Juruena tem condições de intervir na fase de planejamento”, analisa João Andrade, coordenador do Núcleo de Redes Socioambientais, do Instituto Centro de Vida (ICV), que integra a Rede Juruena Vivo e o Fórum Teles Pires. “Até a licença prévia é possível fazer alguma coisa, nas outras fases é mais difícil reverter o processo”, explica Andreia Fanzeres, coordenadora do Programa de Direitos Indígenas da Operação Amazônia Nativa (Opan) e uma das responsáveis pela organização do evento.
A mobilização em Juara também ganhou as ruas do município. No dia 29, uma caminhada de protesto também chamou a atenção da população local. A insatisfação não era só relacionada às questões de injustiça socioambiental em curso mas a temas polêmicos no âmbito nacional, como a aprovação do Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 241.
“Sawê!”, grito de luta indígena foi ecoado por diversas vezes, durante o festival. Depoimentos de lideranças indígenas (Apiaká-Kayabi, Munduruku, Manoki, Myky, Nambikwara, Rikbaktsa) ribeirinhos e de agricultores familiares da região de Fontanilhas e de Cotriguaçu, em Mato Grosso, foram marcadas por manifestações de cooperação. Atingidos de diferentes localidades não mediram esforços para participar. A comitiva do Pará levou 26 horas para chegar até a Juara para prestar apoio aos atingidos de Mato Grosso, que também fazem parte da Bacia do Tapajós. Foi um gesto de solidariedade, segundo seus integrantes, já que representantes mato-grossenses também haviam feito o longo trajeto para participar da 2ª Caravana em Defesa dos Povos do Rio Tapajós, em setembro, em Itaituba. Representantes do Movimento Xingu Vivo para Sempre também compuseram a mobilização.
“É muito triste o que está acontecendo no Teles Pires … Nossa preocupação é com o futuro de nossos filhos e netos. Somos guerreiros e fortes, não chegamos com armas pesadas mas com o nosso direito que está na Constituição”, disse Cândido Munduruku, com voz embargada. Seu depoimento emocionou parentes de diferentes povos, que manifestaram a solidariedade em suas falas. A necessidade do apoio da academia e da formação acadêmica de mais indígenas para construir argumentos na luta pelos direitos também foi destacada por Marcelo Munduruku e por Erivan Apiaká, entre outros.
“Nossos povos estão sendo atingidos. O Projeto Básico Ambiental-Componente Indígena (PBA-CI) não está sendo cumprido pela UHE Teles Pires. Se em 500 anos não conseguiram acabar com a gente, agora que parte de nós sabe ler e escrever, vamos defender nossos direitos com os jovens, através da caneta e papel. Nossos filhos estão estudando para defender o meio ambiente e de outro lado, o governo está matando nossos rios e peixes”, desabafou Erivan.
“Existe um país multicultural a ser respeitado”, disse. Juarez Rikbakta citou a importância da união do seu povo nas três terras indígenas (Escondido, Erikbata e Japuíra), apesar das distâncias geográficas, com os demais parentes de outras etnias.
A presença feminina indígena também se destacou no encontro. “Vamos lutar junto com nossos parentes. Nascemos e crescemos nestas áreas”, disse Elizete Rikbata. E Cesarina Kaiabi frisou a importância do respeito à ancestralidade.
Uma das narrativas mais repetidas no festival foi com relação à experiência cotidiana dos atingidos por barragens de presenciar a diminuição de peixes ao longo dos rios onde estão empreendimentos hidrelétricos já em funcionamento, como também a falta de respeito aos conhecimentos e patrimônios tradicionais e ancestrais. “Os anciãos de nossos povos são a biblioteca de nossa história”, reforçando os valores imateriais que também estão sendo prejudicados com a falta de escuta nos processos de implementação dos empreendimentos. Agricultores familiares mencionaram a dificuldade quanto a ter seus direitos respeitados e a pressão dos processos de desafetação.
No contexto de usinas já instaladas e de projetos de dezenas em curso, o combate à violação de direitos deverá ser uma das bandeiras da recém-criada Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (Fepoimt), segundo um de seus conselheiros, o indígena Silvano Chue Muquissai. A proposta é que o espaço de ocupação se consolide da esfera municipal à federal.
Especialistas de organizações não governamentais (ONGs), da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT), da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) e do Ministério Público Estadual (MPE-MT) destacaram as falhas nas fases de licenciamento, na avaliação de estudos ambientais integrados, dos componentes indígenas, como também a falta de discussão e avaliação de impactos acumulativos das barragens com outros tipos de empreendimentos, entre eles, de mineração e hidrovias associados, e o avanço do agronegócios, com uso de agrotóxicos que atingem os rios. “É importante lembrar que o rio é um ecossistema”, afirmou Brent Millikan, do International Rivers – Brasil, um dos organizadores do Ocekadi.
Outros aspectos levantados foram a pressão no Congresso Nacional, com projetos de lei que flexibilizam o licenciamento ambiental e a tramitação do atual Código de Mineração, além dos reflexos das construções dos empreendimentos nos indicadores de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) locais e a falta de transparência com relação à aplicação dos recursos provenientes da contrapartida das empresas hidrelétricas aos municípios. A discussão sobre novos modelos na matriz elétrica nacional, com menos impactos e geração de passivos socioambientais, permeou a discussão.
Lançamentos e debates
Durante a programação, o público se sensibilizou com a apresentação do vídeo documentário “O Complexo”, sobre os efeitos de empreendimentos na Bacia do Teles Pires, com roteiro de João Andrade e Thiago Foresti, como também de “Belo Monte, depois da Inundação”, produção da International Rivers, do Amazon Watch e de Todd Southgate. Ao mesmo tempo os participantes do Festival se familiarizam com os problemas em comum que envolvem populações atingidas dos estados do MT, PA e AM, descrita no livro Ocekadi: Hidrelétricas, Conflitos Socioambientais e Resistência na Bacia do Tapajós.
“O Festival nos possibilitou momentos que nos envolve e nos aponta que o compromisso e determinação de estar com os Povos Originários é um privilegio que somente temos que partilhar. Sentir a essência, mergulhar e não deixar que a financeirização e o econômico nos consuma”, disse a irmã Lourdes Duarte, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – MT.
Concurso de reportagem anuncia premiados
No III Festival Juruena Vivo, também foram anunciados os premiados do I Concurso de Reportagem da Rede Juruena Vivo, que teve como tema “Hidrelétricas e Direitos Humanos”.
Na categoria impresso, em 1º lugar ficaram as jornalistas Keka Wernek e Natália Araújo, com a reportagem “Abundante, Juruena sobre com o impacto da cobiça”, no Jornal A Gazeta; em 2º lugar, Elani dos Anjos Lobato, do Sindicato dos Trabalhadores no Ensino Público de MT (Sintep/MT)-Juína, com “Os Impactos das hidrelétricas na Saúde Indígena, na Folha do Vale. Já na categoria on line, em 1ª colocação, Luana Soutos, da Associação dos Docentes da Universidade Federal de Mato Grosso (Adufmat-Ssind), com “Projetos de hidrelétricas ameaçam história e vida da população às margens do rio Juruena”; Desirêe Galvão, com “Atingidos por barragem construída há 16 anos em MT lutam por indenização”, do G1 MT, e em 3º, Mequiel Zacarias Ferreira, com “Para que direitos humanos?”, na Rádio Progresso 640 on line.
O III Festival Juruena Vivo apresentou também manifestações culturais musicais e artesanato indígena e regional, como de grupos de mulheres do município de Cotriguaçu, do noroeste mato-grossense. O encontro foi realizado em parceria com a Universidade Estadual de Mato Grosso (Unemat), que promoveu a V Mostra Científica Cultural do Vale do Arinos, com apoio da Capes.