A Ponte de Pedra é, sem sombra de dúvidas, um dos lugares sagrados de maior importância para os povos indígenas do Alto Juruena. Palco do início da expansão humana pelo patamar terrestre, o sítio da Ponte de Pedra abrange uma cachoeira que deságua em dois fios d’água, que caminham rumo a um furo na pedra, por onde o rio segue seu curso. Rio acima, alguns poucos metros antes, quatro quedas d’água decoram a paisagem, tornando seu curso mais caudaloso. Não há como não se impressionar diante da beleza majestosa deste cenário.
No início dos tempos, a terra era diferente desta que se conhece hoje em dia. O mundo já existia, assim como os humanos também existiam. Naquele tempo, o patamar terrestre era ocupado somente por espíritos Enore. Por sua vez, os humanos residiam no interior de uma pedra, localizada nas cabeceiras do rio Sucuruiná, afluente da margem direita do Juruena. Os humanos desconheciam a existência de um mundo para além da pedra, assim como não sabiam a respeito da existência dos espíritos que viviam na terra. Por sua vez, os espíritos também desconheciam a existência dos humanos, e seu habitat subterrâneo.
Certo dia, o chefe dos espíritos estava sentado no córrego da Pedra da Cascavel. Melancólico e reflexivo, ele pensava se seria possível deixar outros descendentes na terra, além de Zokozokoiro e Mazaharé, seus filhos. Estes haviam saído para coletar frutinhas do Cerrado: jabuticaba, goiabinha, jatobá. Quando retornam, vão até o porto do rio carregando cabaças, pretendendo buscar água. Mas chegando lá, ouvem um barulho desconhecido, que muito os amedronta. Segundo os Haliti, este barulho vinha do som dos instrumentos musicais que estavam sendo tocados pelos humanos, durante um ritual. Já para os Enawene-Nawe, o som teria sido provocado pelos gritos dos competidores que participavam de uma partida de cabeçabol, no interior da pedra.
Apavorados, os filhos do Enore correm até o seu pai para contar o que aconteceu. Mesmo diante do pavor manifestado por seus filhos, sua primeira reação é de duvidar da existência de outros seres. Ele chega a afirmar que isso não seria possível, afirmando não haver mais ninguém habitando a terra. Exaltado e pensando se tratar dos Yakane, espíritos da água que queriam dominar o patamar terrestre, o chefe Enore decide intervir a favor dos seus filhos, enviando, com uma borduna, um raio que atinge em cheio a pedra, gerando nesta uma fissura.
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Do ponto de vista de cada um dos distintos povos do Alto Juruena, algumas diferenças significativas permeiam as narrativas sobre a origem humana no patamar terrestre. Mas um ponto em comum é a representação do ciúme enquanto motor de conflitos e, consequentemente, do ordenamento social e territorial. Nas diferentes versões sobre a saída da pedra, temos presentes relatos sobre episódios de ciúmes diretamente associados à ordem de saída (quem saiu primeiro) ou o modo de saída (quem saiu feliz). É também recomendado que o ciúme seja combatido, em detrimento da exaltação da benevolência nesta nova vida, estabelecida no patamar terrestre.
Extratos de Paisagens Ancestrais do Juruena. Juliana de Almeida. Operação Amazônia Nativa, 2019, p.66-69.