Reportagem equivocada provoca onda de agressões contra indígenas.
Povo Myky. Fonte: PGTAMyky/OPANO povo Myky ficou perplexo por conta de uma matéria veiculada no dia 7 de outubro, dia das eleições do primeiro turno. Ao contrário do que foi publicado, eles tiveram um dia tranquilo em que puderam exercer o direito ao voto e ainda compartilhar com os presentes elementos da sua cultura. Mas a partir da notícia intitulada “Em MT, Exército é recebido a flechadas em aldeia e índio é preso com 70 títulos de eleitor”, agora com novo título no portal G1 de Mato Grosso, a história é invertida e convertida em um prato cheio para quem quer disseminar o ódio.
“Sem motivo, sujaram a nossa reputação”, disse Kamtinuwy Myky, que lamentou a notícia e os comentários. “Eles tinham comentado sobre nós como índios vagabundos”. As postagens foram além: “Nem devia existir mais índios”, “Índios não servem para nada!”, “Índios e quilombolas não tem serventia nenhuma”, “Índio e sem-terra não servem pra nada”, “Chamar a Funai? Em outro país, esses índios receberiam era chumbo”, “O Exército tinha que ter entrado dando tiro de borracha nesses silvícolas!”, diziam alguns. Outros, tinham o tom mais irônico: “Índio tem utilidade. Sem eles não teríamos índias lindas. A única utilidade”, dizia um deles, fazendo alusão à cultura do estupro.
Os comentários não param por aí: “Pleno 2018 e tomando flechada de índio. Devíamos ter feito igual aos EUA e varrido eles da face da terra”, e, ainda, “Tem que passar fogo na cara desses safados”, em uma aparente menção ao assassinato do cacique Pataxó, Galdino Jesus dos Santos, em 1997, em Brasília (DF). “Índio não tem serventia alguma. São como ratos e baratas”, escreveu ainda mais alguém obstinado em ver os indígenas perderem seus direitos.
Onda de preconceito e racismo
Boa parte dos comentários veiculados no G1 seriam passíveis de punição prevista no Código Penal. Pelo artigo 297, sobre incitação ao crime, e 287, de apologia ao crime; outros, por crimes contra a honra, como calúnia, difamação e injúria (artigos 138, 139 e 140). Esses comentários afrontam também a convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio, de 1948, que diz que serão punidos os atos de incitação ao genocídio, de que o Brasil e outros 149 países são signatários. Esse instrumento foi acordado após a Segunda Guerra Mundial.
Os comentários provocados pela notícia ferem, ainda, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, segundo a qual “os povos e pessoas indígenas são livres e iguais a todos os demais povos e indivíduos e têm o direito de não serem submetidos a nenhuma forma de discriminação no exercício de seus direitos, que esteja fundada, em particular, em sua origem ou identidade indígena” (artigo segundo) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos, das quais pode-se destacar violações ao artigo sexto, que determina que todo ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei, ao artigo 21º, que diz sobre o direito a tomar parte no governo de seu país, e ao artigo primeiro: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
O que aconteceu de verdade?
Conforme carta e relatos dos Myky, um senhor começou a explicar aos militares sobre o uso do arco e flecha, fazendo uma demonstração direcionada para o bananal, para longe, justamente para não machucar ninguém. “No domingo, o pessoal lá, os mais velhos, eles sempre estão andando com arco e flecha, mas era uma demonstração pra eles”, disse Tupy Myky. As próprias equipes do Exército, que estava na aldeia desde a véspera do primeiro turno, e do Tribunal Regional Eleitoral (TRE) reconheceram o equívoco. A Fundação Nacional do Índio (Funai) também fez nota para esclarecer os fatos.
“Espero que no segundo turno das eleições, dia 28, o pessoal retorne lá de novo, até porque está tudo tranquilo. Eu acho que foi um mal-entendido, então esse é o nosso recado”, disse Tupy
Na carta que publicaram sobre o fato, os Myky pedem retratação pelo ocorrido. “Ficamos tristes porque os brancos não conhecem a realidade do povo Myky, mas ficam falando mal da gente”, disse Kamtinuwy Myky.