Realizado entre os dias 28 e 31 de julho, em Belém (PA), o Fórum Social Pan-Amazônico (FOSPA) divulgou na tarde desta quinta-feira (4), o documento final do encontro. A Carta de Belém, como foi chamada, lista os diversos problemas enfrentados pelos povos tradicionais da Pan-Amazônia, como o avanço do agronegócio, dos grandes projetos e da mineração sobre os territórios da floresta. O documento reforça o compromisso do FOSPA em “expandir ações para superar a crise humanitária, ambiental e climática, e para influenciar órgãos governamentais internacionais a adotarem políticas que sejam consistentes com este propósito global” e reafirma o alerta: “o tempo está se esgotando”.
Leia abaixo, a carta na íntegra.
DECLARAÇÃO PAN-AMAZÔNICA DE BELÉM
X FÓRUM SOCIAL PAN-AMAZÔNICO – FOSPA
28, 29, 30 e 31 de julho, Belém do Pará, Brasil
DA NOSSA PAN AMAZÔNIA…
1. Abraçados em frente ao Rio Guamá, no grande encontro de toda a diversidade que habita a
Pan Amazônia, nós, indígenas, negros, quilombolas, camponeses, ribeirinhos, urbanos, de
todos os gênero e faixas etárias dos nove países da Bacia Amazônica: Brasil, Bolívia, Peru,
Equador, Colômbia, Venezuela, Guiana, Suriname e Guiana Francesa, reafirmamos a viagem
que começamos há 20 anos, desde o Primeiro Encontro como Fórum Social Pan Amazônico,
com a esperança de um “Outro mundo possível”. Não podíamos imaginar, na época, que hoje
o mundo seria ainda pior.
2. Hoje, a Amazônia está no seu pior momento, devastada por governos para os quais a
natureza é uma mercadoria e os direitos dos povos não têm validade. Até hoje, nenhum
governo tem garantido o pleno exercício dos direitos dos povos amazônicos na defesa da Mãe
Natureza. Nesta situação, é necessário chamar os movimentos sociais, apelar para a
criatividade, aprender com os erros e continuar a luta.
3. O que percebemos ontem como ameaças são hoje realidades derivadas de um sistema de
opressão múltipla: patriarcal, racista, capitalista e colonial, que localizou a grande Bacia
Amazônica como sua mais recente fronteira de expansão, colocando em risco todas as formas
de vida e aqueles que as defendem.
Sob a falsa premissa do desenvolvimento, a extração da borracha, madeira, petróleo,
agronegócio, grandes hidrelétricas e mega-mineração avançou sobre os diferentes territórios
amazônicos e foi inserida em modelos de caráter colonial, incluindo propostas de
mercantilização de elementos do bioma. Sob este pretexto, os territórios estão sendo
militarizados e os bens comuns saqueados, para gerar lucros. A desigualdade social e a
violência estrutural e factual estão se aprofundando para a todas as populações da região pan
Amazônica, que hoje vê como toda a vida está sendo destruída e envenenada.
4. A atual crise climática e sua ameaça civilizacional, consequência do modelo de
desenvolvimento, levou o ecossistema amazônico ao ponto de não retorno, ameaçando com a
perda irreparável da floresta tropical mais importante do planeta e lar de mais de 50 milhões
de pessoas, juntamente com boa parte da biodiversidade planetária. Se não pararmos esta
tendência agora, amanhã será a morte da região Pan Amazônica, vital para frear o
aquecimento global e garantir a vida no planeta. O tempo está se esgotando.
5. Indígenas, camponesas, negras, quilombolas, mulheres populares e urbanas, mulheres trans
e lésbicas, uma força de resistência em defesa da vida, continuam a ser violadas pela ação e
omissão dos Estados, fundamentalismos políticos e religiosos, patriarcalismo, racismo,
militarização e corrupção, enraizadas e instaladas na nossa sociedade capitalista, que através
de corporações transnacionais e forças econômicas expropria territórios com impunidade e
promove a violação de corpos, o tráfico e controle de pessoas e modos de vida, ,a violência
sexual, feminicídio, violação de direitos sexuais e reprodutivos, ataques contra a diversidade,
dissidência sexual e de gênero.
6. Toda a Bacia Amazônica está passando por uma situação de guerra não convencional, com a
participação de forças militares estatais, paramilitares, milícias e traficantes de drogas agindo
em conexão com grandes interesses econômicos. A isto se somam medidas coercitivas
unilaterais, bloqueios financeiros e econômicos e ameaças militares impostas por grandes
potências globais e por grupos fundamentalistas.
7. Reiteramos que, embora os perigos tenham aumentado, as lutas e resistências adquiriram
uma força sem precedentes, a partir da experiência das espiritualidades de nossos povos
baseada na experiência das espiritualidades de nossos povos, que devem continuar a crescer
como filhos da Mãe Amazônia. Neste sentido, os povos da Pan Amazônia estão se
organizando, se unindo, lutando por seus territórios e culturas, para tornar possível um futuro.
Assim avançam as lutas anti-racistas, anti-patriarcais e anticoloniais, mantendo o otimismo
que nos tem caracterizado, mas com um realismo que nos obriga a exigir o que é (im)possível.
Este outro mundo é possível.
EXPRESSAMOS A NOSSA PROPOSTA POLÍTICA
comum, que reconheça e respeite os territórios e o pleno exercício dos direitos dos povos
amazônicos e dos direitos da Natureza.
9. Recuperar, valorizar e proteger o conhecimento de homens e mulheres e as formas
ancestrais de organização de nossos povos para o cuidado e gestão da água, a proteção de
nossos territórios, que incluem nossos rios, limpos e livres de megaprojetos.
10. Nossas alternativas para uma terra sem males são a produção agrícola e florestal
diversificada em harmonia com a natureza, agroflorestação, agroecologia, projetos para
produção e consumo local, manejo comunitário dos bens comuns, florestas e território, uso de
sementes nativas, ecoturismo comunitário, projetos de energia alternativa, cuidado e manejo
integrado e participativo de bacias hidrográficas e biorregiões, e muitas outras iniciativas
voltadas para a vida e não para a mercantilização da natureza.
11. Propomos articular esforços e lutas em defesa dos territórios da Pan Amazônia e da vida,
bem como, com outros movimentos sociais em outras regiões do mundo, contra o modelo
econômico neoliberal patriarcal, colonial e racista que viola todos os nossos direitos individuais
e coletivos, contra a corrupção e contra os fundamentalismos políticos, econômicos,
socioculturais e religiosos.
12. Exortamos os governos dos países pan amazônicos a porem em prática seus discursos
contra a crise climática e os direitos da Mãe Terra, com medidas reais contra o desmatamento,
a degradação e o aumento das emissões, e não com as maquiagens das chamadas economias
verdes. Exigimos que eles cumpram e fortaleçam seus compromissos, assumidos em nível
internacional.
13. Promover o exercício da autogestão e autodeterminação dos povos indígenas, negros,
quilombolas, camponeses e costeiros, permitindo o exercício da gestão pública baseada em
sua própria visão normas e procedimentos; isto requer, entre outras coisas, a implementação
de mecanismos adequados às novas formas de planejamento que garantam seus modos de
vida, respeitando suas cosmovisões. Sem a autogestão territorial dos povos, não há futuro
para a Amazônia, nem para o mundo. Exigimos que os Estados cumpram plenamente as
sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, o veredicto de 2015 de
Kalina e Lokono pronunciado pela OEA deve ser aplicado pelo governo do Suriname.
Finalmente, exigimos a autodeterminação da Guiana, ocupada pela França. Nossa Bacia
Amazônica não estará completa até alcançarmos sua descolonização.
14. Rejeitamos as políticas públicas extrativistas dos governos que ameaçam a vida e a
natureza. Exigimos o cumprimento do acordo 169 da OIT, a assinatura, ratificação, respeito e
implementação do direito de consulta e consentimento livre, prévio e informado, que inclui o
direito de veto devido a objeção de consciência cultural no âmbito da autodeterminação dos
povos, e exigimos manter os hidrocarbonetos no subsolo e uma Amazônia livre de mineração.
15. Exigir dos governos a plena propriedade e garantia legal dos territórios dos povos e
comunidades, incluindo o subsolo, para que tenham proteção permanente contra a extração
de minerais e hidrocarbonetos, para que não violem nossa mãe terra, para cuidar dos espíritos
da floresta e para assegurar o Bom Viver dos seres humanos e de todas as formas de vida.
16. Condenar e rejeitar a implementação de medidas coercitivas, como qualquer forma de
bloqueio político, econômico, financeiro e diplomático contra qualquer país em nossa Bacia
Amazônica, pois são ações políticas criminosas que afetam nossos povos.
17. Assumir a defesa radical dos direitos dos povos do Pan Amazônia à educação, comunicação
e saúde a partir de uma perspectiva popular, intercultural, comunitária, crítica e decolonial.
18. As mulheres da Pan Amazônia estão comprometidas com a reinvenção e a construção
coletiva da democracia que desejamos. Exortamos todos os povos e organizações da Amazônia
a incluir em suas agendas ações que corrijam as desigualdades e as relações de poder que
persistem e afetam nossas vidas, nossos corpos e nossos territórios. Esta articulação deve ser
direcionada para incidir em espaços internacionais que possam fazer recomendações aos
Estados a respeito da urgência de incluir ações concretas que respondam à transformação da
violência que afeta as mulheres amazônicas e andinas.
19. Apoiamos fortemente as cartas das Pre-FOSPAs realizadas em cada país e as conclusões
das Casas dos Saberes e Sentires (Casa da Mãe Terra, Casa da Resistência da Mulher, Casa dos
Comuns da Natureza, Casa dos Povos e Direitos Indígenas e Casa dos Territórios e
Autogoverno).
20. Reafirmamos a importância das iniciativas de ação como instrumentos de mobilização para
alcançar os objetivos do processo FOSPA. Só é possível gerar processos de transformação se
nossas organizações na Pan Amazônia se unirem e se articularem nestas ações.
21. Apoiamos o Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza, que chegou em Belém em
caravana após viajar pelos territórios Xingu e Carajás. Apoiamos sua afirmação que a Amazônia
é uma entidade viva e ameaçada, sujeita a direitos, à qual as empresas, em cumplicidade com
os estados, declararam guerra. As comunidades indígenas, assentamentos, acampamentos,
comunidades locais, tradicionais, camponeses, quilombolas, ribeirinhos, rurais e indígenas
urbano são os que estão na linha de frente deste enfrentamento, e seus direitos devem ser
garantidos. Ao mesmo tempo devem ser destacadas as múltiplas iniciativas de restauração
integral, moratória extrativista e transição ecológica promovidas pelas comunidades.
22. Somos Natureza e há mais de 37 países que reconhecem os direitos da Natureza em vários
níveis, incluindo os direitos da Amazônia. No Brasil, quatro municípios aprovaram este
reconhecimento e mais quatro estados estão debatendo, incluindo Belém, sede do X Fórum
Social Panamazônico (FOSPA).
Direitos da Natureza, composta por deputados e deputadas indígenas e não indígenas de todo
o mundo, que busca articular esta mudança de paradigma, o mais rápido e diretamente, com
políticas públicas que reconheçam a Natureza como um sujeito de direitos.
E PROPOMOS AS SEGUINTES AÇÕES:
23. Declarar o estado de emergência climática na região Pan Amazônica e s zelar pelo seu
cumprimento a fim de permitir sua restauração ativa e a proteção de sua biodiversidade, em
coordenação com os povos amazônicos e avançar em direção a um novo paradigma de
relacionamento com a natureza.
Os avanços rumo à uma mudança de paradigma serão nosso melhor legado. Isto exigirá a
transferência de recursos significativos para a restauração e cuidado da Bacia Amazônica e a
transformação do comércio internacional de commodities da economia regional, favorecendo
a produção e comercialização de bens que são climaticamente compatíveis com o ecossistema
amazônico, restringindo a exportação de carne, soja, madeira, minerais, hidrocarbonetos e
derivados para os mercados da Europa, Ásia, América do Norte e outros.
24. Apoiar o veredicto do III Tribunal de Ética em defesa dos órgãos e territórios das mulheres
amazônicas e andinas, que continuará a se reunir e investigar os casos ali apresentados.
Continuaremos a fortalecer este cenário de visibilidade e defesa internacional que nos
permitiu focalizar os múltiplos impactos do sistema de discriminação nas vidas, corpos e
territórios das mulheres, sendo a violência, em suas diversas manifestações, a que emerge
como resultado do atual poder capitalista patriarcal e colonial e racista.
25. Promover a educação, a pesquisa e a comunicação como pilares dos processos de
transformação nos territórios da região Pan Amazônica, promovendo seus próprios cenários
que qualificam as lutas e ações de incidência com os Estados, através da elaboração de
mapeamentos e sistematizações de experiências transformadoras, populares, interculturais e
comunitárias com ênfase pan amazônica, incentivando a interaprendizagem, a promoção de
estudos e a pesquisa-ação participativa e transformadora.
26. Assegurar o objetivo comum de desmatamento real zero e a promoção do tratado de não
proliferação de combustíveis fósseis, deixando o petróleo no chão e caminhando para uma
transição energética popular.
27. Fortalecer a iniciativa de ação em defesa dos corpos e territórios das mulheres amazônicas
e andinas, como espinha dorsal de nossos esforços coletivos para responder à ofensiva do patriarcado, do fundamentalismo político e religioso, do capitalismo e do racismo, que afeta
mais as mulheres indígenas, negras e camponesas que vivem na Bacia Amazônica.
A partir daí, continuaremos a tornar essas realidades visíveis e a defender, através de
campanhas e mobilizações em defesa da vida das mulheres amazônicas e andinas e da rejeição
de todas as formas de discriminação e violência contra seus corpos e territórios.
28. Apoiar a realização de uma reunião amazônica sobre autonomia e autogoverno; apoiar a
criação de guardas indígenas, quilombolas e camponeses e outras comunidades tradicionais
para a autoproteção dos territórios, viabilizando sua efetiva sustentabilidade.
29. Promover a articulação para realizar campanhas permanentes, locais e globais:
– Para ajudar a conter a exportação de produtos que promovem a poluição e o desmatamento
da Amazônia.
– Atacar a fome, promovendo a segurança alimentar na Pan Amazônia.
– Zelar pela vida e proteção dos defensores da natureza, denunciando e enfrentando, em todos
os países da Pan Amazônia, sua perseguição, criminalização, acusação, ameaças,
desaparecimentos e assassinatos pelos novos traficantes e predadores das florestas, máfias e
assassinos contratados que afetam a vida dos povos e outras formas de vida. A solidariedade
entre nossos povos deve ser efetiva e afetiva com eles; nossa defesa deve ser sustentada para
que os Estados garantam suas vidas a partir da ratificação e cumprimento do Acordo de
Escazú, condenando os perpetradores e honrando os mártires.
– Para assegurar a autodeterminação da Guiana franco-colonizada.
30. Promover o comércio de bens que são produzidos em sistemas compatíveis e em harmonia
com a Amazônia. Nossas alternativas incluem a agroflorestação ecológica, a agricultura familiar
camponesa e o manejo comunitário da floresta, para substituir a economia de destruição da
Amazônia por uma economia florestal.
31. Impulsionar as Assembleias da Terra para fazer frente à captura corporativa e o fracasso
das conferências da ONU sobre clima, biodiversidade e sistemas alimentares, fornecendo
assim respostas eficazes à crise climática e ecológica.
32. Criar novas formas de integração regional, com base na consolidação de um bloco de
países amazônicos que permita avançar na direção do pós-extractivismo na Amazônia.
33. Exigir o compromisso dos Estados na construção de mecanismos regionais que garantam o
respeito pelo livre trânsito dos habitantes da Bacia Amazônica em todos os países que a
compõem.
34. Apoiamos a resolução dos juízes do Tribunal Internacional dos Direitos da Natureza que
propôs a criação de um Tribunal dos Direitos da Natureza no Canadá, de onde vem o capital do
projeto Belo Sun, que será desenvolvido na bacia do rio Xingu, a fim de tornar visível e
denunciar na fonte como seus recursos estão sendo utilizados para a destruição da Amazônia.
35. Apelamos para a diversidade das organizações que trabalham pela defesa e cuidado
integral da Amazônia para continuar a fortalecer suas capacidades transformadoras nos
processos de articulação em torno das Iniciativas de Ação da FOSPA.
A FOSPA continuará a tecer alianças com diferentes movimentos sociais ao redor do mundo a
fim de expandir ações para superar a crise humanitária, ambiental e climática, e para
influenciar órgãos governamentais internacionais a adotarem políticas que sejam consistentes
com este propósito global.
Em 31 de julho de 2022, Campus da Universidade Federal do Pará.
Belém do Pará, Brasil, capital da resistência, trincheira dos povos.
“Tecendo esperanças na Pan Amazônia”